Imagine uma cidade em que as novas tecnologias adotadas estão alinhadas com propósitos éticos e sociais. Que os cidadãos participam ativamente das decisões da prefeitura sobre o uso de recursos como inteligência artificial e big data, ao mesmo tempo em que são capacitados para identificar e combater a desinformação. Esses são alguns dos princípios das cidades MIL (Media and Information Literacy), conceito promovido pela Unesco com o objetivo de promover a alfabetização midiática e informacional nas cidades, educando os seus habitantes para o desenvolvimento do pensamento crítico e criativo.
As cidades MIL surgiram como uma evolução do conceito de cidades inteligentes (smart cities), que focam no uso das novas tecnologias da informação e comunicação para aumentar a eficiência dos serviços prestados nas cidades, como transporte, saúde e segurança pública. A ideia é incluir o lado humano nas discussões sobre informatização do ambiente urbano. Várias cidades do mundo já estão introduzindo iniciativas nesse sentido, como por exemplo, Helsinki, na Finlândia, Bedford, na Inglaterra e Ottawa, no Canadá.
Aqui no Brasil, o tema tem sido articulado pelos professores da Universidade de São Paulo, (USP), Mitsuru Yanaze e Felipe Chibás Ortiz, que organizaram o livro Marketing, Comunicação, Tecnologia e Inovação nas Cidades MIL, lançado este ano. Recentemente, o professor Ortiz foi eleito o novo representante regional da América Latina e do Caribe na Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco (GAPMIL, na sigla em inglês). Na entrevista a seguir, ele fala sobre as principais características das cidades MIL, como mensurar esses atributos e seus planos para o GAPMIL.
Como a cidade MIL se relaciona com o de cidades inteligentes?
O conceito de cidades MIL é uma evolução do conceito de cidades criativas, que também é da Unesco, e procura aglutinar e complementar outros conceitos como cidade educativa e inteligente, cidades resilientes e cidades do conhecimento. Ele aborda as novas tecnologias, mas, acima de tudo isso, foca a conexão dessas novas tecnologias com a ética, com o propósito de fazer cidades e serviços que não utilizem, por exemplo, os dados bancários do cidadão sem o seu consentimento. Ele também tem como foco o combate às fake news, deepfakes e pós-verdades, usando as novas tecnologias, mas voltado ao desenvolvimento humano.
E como saber se uma cidade atingiu o patamar de cidade MIL? Existe alguma forma de mensur isso?
Eu e minha equipe estamos desenvolvendo um conjunto de 13 métricas para avaliar as cidades e estamos levando essa métrica para um aplicativo. Elas medem, por exemplo, educação, bibliotecas, segurança, saúde, mas todas com um olhar MIL. Isso significa, por exemplo, ao invés de olhar quantos hospitais ou clínicas existem na cidade, quantos fazem tratamentos preventivos e informam os cidadãos sobre esses tratamentos, porque não adianta ter 100, 200 hospitais, mas nenhum estar em função do cidadão.
Outro indicador é inteligência artificial, mas, de novo, não se trata de saber quantas cidades utilizam essas tecnologias ou quantas startups existem nessa área. É sobre quantas dessas startups têm como missão desenvolver a educação da cidade, quantas se dedicam à saúde preventiva dos cidadãos, sem ter o lucro como objetivo único. Tem que crescer a inovação social.
E isso alavanca um conjunto de outras coisas. Por exemplo, é importante que a prefeitura se coloque em função do cidadão. Ela tem um órgão de controle das fake news para as eleições? Ela possui um comitê de ética? Não é sobre quantos aplicativos a prefeitura usa ou se a coleta seletiva é feita com robôs, mas se a coleta é feita de uma forma que os cidadãos ajudaram a criar. As decisões da prefeitura são cocriativas? Os aplicativos usados são cocriados? Eles permitem que as pessoas deem opiniões e modifiquem a tecnologia em função disso?
Falando em cidadãos, como eles podem contribuir para que as cidades se tornem de fato MIL?
Os cidadãos podem fazer propostas para que as cidades funcionem dessa maneira cocriada e participativa. Mas, primeiro, são as prefeituras que têm que mudar, porque se os cidadãos fazem uma proposta, mas existe um olhar tradicional da prefeitura, essas propostas não serão ouvidas. Então, em primeiro lugar, precisa acontecer uma mudança na prefeitura no sentido de ter no setor de gestão da inovação pessoas com um olhar mais abrangente, mais crítico.
Você é criador da metodologia das barreiras culturais à comunicação, que são barreiras que influenciam e causam conflitos entre as pessoas. Como uma cidade MIL lida com esses empecilhos?
Nós temos um modelo com 20 barreiras culturais à comunicação, que também foi aceito pela Unesco, como religiocentrismo, sexismo, etnocentrismo, individualismo, bullying, tecnocentrismo e a discriminação por idade. São tipos de barreiras que envolvem diversos paradigmas culturais e formas de enxergar a sociedades que às vezes se contrapõem e que podem gerar conflitos, ambientes e situações problemáticas. Mas, se você consegue diagnosticar essas barreiras culturais com antecedência, é possível prevenir conflitos e propor estratégias para resolvê-los.
Por exemplo, no Google, quando se digitava a palavra “lésbica”, apareciam vídeos pornográficos. Isso não significa que todas as pessoas lésbicas gostam desses vídeos, mas que quem programou os algoritmos era uma pessoa com barreiras culturais sexistas. Com preconceito, para usar uma linguagem mais comum. Muitos desses problemas são encontrados em cidades que não são MIL. Porque em um projeto de cidade MIL você treina os profissionais de informática, os funcionários da prefeitura, dos transportes para que eles aprendam a ter essa leitura de barreiras culturais à comunicação e tenham um olhar crítico da sociedade. Essa é a essência da cidade MIL. E essas pessoas treinadas conseguem tratar melhor todas as pessoas.
Você pode dar um exemplo prático do que ocorre em cidades que já adotam esse conceito?
Sim. Em Helsinki, na Finlândia (foto que abre esse texto), tem um bairro que se chama Kalamatasa e lá os prédios são planejados pelos cidadãos juntamente com os arquitetos e engenheiros.A energia consumida é produzida lá mesmo. As pessoas comuns também participam de comitês de ética dentro da prefeitura para combater as fake news, DeepFakes e pós-verdades e cocriam, juntamente com as startups, as inteligências artificiais que vão ajudar nisso.
Você foi eleito o representante da América Latina e Caribe no GAPMIL. Quais são os seus planos? Vocês já desenvolveram um plano de ação?
Estamos na fase de planejamento, mas ainda não temos uma agenda. Quais são os pontos principais? Crescermos juntos, todos os países latino-americanos e o Caribe, e aplicar as metodologias definidas já pelos especialistas da Unesco e do GAPMIL em todos os países, o que significa também pensarmos as cidades a partir das treze métricas que eu comentei. Pensar a cidade com ética e não apenas com tecnologia e começarmos a modificar. É claro que cada país com suas perspectivas, sua forma de enxergar seus desafios, porque os desafios de São Paulo não são os mesmos de Nairobi, no Quênia, que não são os mesmos da Tunísia, por exemplo.
E para ser uma cidade MIL não é necessário ser uma megalópole. Helsinki tem apenas dois milhões de habitantes, não precisa ser Tóquio ou a Cidade do México. É perfeitamente possível aplicar esses conceitos em uma cidade menor, desde que se siga as linhas desse tipo de framework, essa missão. Na verdade, a cidade MIL é uma missão, uma utopia, porque sempre vamos ter as cidades são dinâmicas, e sempre estão mudando no sentido ético, humano, no sentido do crescimento conjunto. Isso nunca acaba, é um norte, uma meta a ser seguida.
Por Paula Penedo P. de Carvalho