Microeconomia, inovação e os efeitos da guerra comercial entre EUA e China: uma conversa com Nicholas Vonortas

"O conflito EUA-China não vai acabar antes da pandemia", alerta Vonortas, co-organizador uma série de workshops sobre avanço tecnológico e recuperação econômica em países emergentes". Por Guilherme Cavalcante Silva, bolsista Labjor Unicamp, especial para o Portal Campinas Inovadora

Em meio a um ano de recessão generalizada, com sinais lentos de recuperação econômica vindos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, muitos estão se perguntando como a economia pode voltar ao ‘normal’ ou, pelo menos, a “um novo normal”, o mais rápido possível. O professor Nicholas Vonortas, um dos principais estudiosos de estratégias e políticas de inovação no mundo, com mais de 30 anos de experiência na área, não está pertente à esse grupo ou, pelo menos, evita tomar esse caminho imediatamente. Para ele, as pessoas esqueceram que a noção de que havia um “normal” antes da pandemia é incorreta, especialmente com as guerras comerciais entre EUA e China, além do crescente reconhecimento da importância das políticas nacionais para as cadeias globais de valor.

Acervo pessoal

Vonortas é professor no Center for International Science and Technology Policy e no Department of Economics (Columbian School of Arts and Sciences), da George Washington University (EUA) é também o Investigador Principal do programa São Paulo Excellence Chair InSysPo (Innovation Systems, Strategies and Policy), parte do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é um dos organizadores da série online de workshops “Technology Upgrading and Economic Catch-up” [“Avanço tecnológico e convergência econômica”], cuja primeira edição ocorreu no começo de novembro [você pode conferir o evento na íntegra abaixo]. As apresentações têm como pano de fundo contribuições presentes no livro “The Challenges of Technology and Economic Catch-Up”, a ser publicado em meados de 2021 pela Oxford University Press.

Na conversa a seguir, Vonortas revela como surgiu a ideia dos workshops, fala sobre seu histórico de pesquisa em inovação e compartilha seu parecer sobre o impacto da pandemia de Covid-19 e das guerras comerciais entre EUA e China para o futuro da inovação e do empreendedorismo:

 Portal Campinas Inovadora: Prof. Vonortas, sua pesquisa é diversificada e abrange diferentes tópicos, tais como cooperação entre universidade e indústria, redes de inovação, a relação entre a globalização e a capacidade tecnológica local e assim por diante, todos com uma forte base empírica. Poderia nos dizer mais sobre sua pesquisa?

Nicholas Vonortas: Fui treinado como economista de organização industrial, em outros termos, na área de macroeconomia aplicada. Nesse campo, utilizamos muitos modelos e fazemos bastante investigação empírica. Macroeconomia aplicada significa o estudo de empresas e indústrias no nível micro, estudando estratégias e políticas que refletem diferentes cenários para as indústrias e empresas e assim por diante. Porém, eu não sou um microeconomista [outro termo para macroeconomia aplicada] clássico. Tecnologia e inovação sempre foram meus principais interesses de pesquisa e ambos são área extremamente interdisciplinares. Elas envolvem física, química, engenharia, administração, sociologia, todas juntas. A fim de dar conta de abarcar visões mais amplas que fizessem jus a interdisciplinaridade do tema, resolvi trabalhar, ao longo da minha carreira, na intersecção entre economia e outras ciências, olhando especialmente para a análise de políticas e normas. Em minha instituição nos EUA, por exemplo, sou membro do corpo docente do Departamento de Economia e leciono matérias de economia, porém sou ao mesmo tempo diretor do Instituto de Política Científica e Tecnológica, que está em uma escola diferente. Portanto, consider que estou sempre no entremeio. Mas você resumiu os tópicos que minha pesquisa abrange: política científica e tecnológica, especialmente relacionada à inovação e tecnologia; empreendedorismo; redes de inovação e acordos colaborativos; e avaliação de pesquisa e desenvolvimento na área de inovação. São interesses que se refletem nas principais trajetórias de pesquisa do InSySPo.

Portal: Uma lista extensa. Há algum dentre eles que tem recebido mais atenção de sua parte recentemente?

Vonortas: Diria que os estudos em empreendedorismo. Dado o interesse de praticamente todos os governos do mundo em pequenas empresas, e particularmente em empresas que são intensivas em conhecimento, este tornou-se um tópico relevante para mim. Abordo vários tópicos relacionados à criação de universidades, parques industriais e ecossistemas regionais de inovação. Posteriormente colocaria, em ordem: avaliação, acordos colaborativos e política científica e tecnológica no nível macro.

Portal: Eu diria que seu trabalho reside na intersecção entre um olhar mais global em direção à economia, estudando fenômenos como a globalização e as cadeias globais de valor, e um olhar econômico mais situado, voltado para o nível micro de indústrias específicas em países específicos.

Vonortas: Exatamente! Inclusive você me lembrou que, neste momento, estou fortemente envolvido em dois artigos que abordam cadeias globais de valor, um deles é baseado em dados europeus e faz parte de um projeto financiado pela União Europeia chamado GLOBALINTO. Então, pode esperar um artigo fortemente empírico sobre este tema vindo aí.  Toda essa divagação para afirmar que as cadeias globais de valor são um fenômeno interessante de nossos tempos. Não podemos evitar lidar com elas ou apresentá-las em sala de aula, especialmente após a pandemia e o terrível conflito geopolítico entre China e Estados Unidos. Estes dois fatores têm rompido com as cadeias globais de valor conforme as conhecemos. Agora, ao invés de apenas se guiarem pela eficiência econômica, as companhias construirão suas cadeias globais de valor de olho também na capacidade de resiliência, ante os riscos geopolíticos ao redor do mundo. Isso, por si só, é uma notícia maravilhosa para as economias emergentes, porque existem cadeias de valor por aí sofrendo reconfigurações importantes, oferecendo assim oportunidades únicas de exploração por parte de países como Brasil, México, Argentina, Chile e outras nações latino-americanas. Muitos investimentos estão sendo redirecionados para locais diferentes e a América Latina pode desempenhar um papel significativo aí. Faço apenas a nota de que estes países não devem se sentar, relaxados, aguardando que as oportunidades caiam no colo deles. Eles devem sair e correr atrás destas oportunidades, porque existem diversos países ao redor do globo sedentos por pedaços destas cadeias de valor.

Portal: Estas assimetrias geopolíticas meio que jogam por terra a velha utopia de uma globalização onde os acordos e as atividades econômicas rolam livres de quaisquer restrições locais. Bem, sabemos agora que não é assim que funciona. Talvez, jamais funcionou assim.

Vonortas: Veja bem, sou velho o suficiente para me lembrar dos velhos tempos do governo Allende, no Chile, por exemplo. Nestes tempos, as corporações multinacionais eram consideradas como vilões, dos quais precisávamos nos defender. Este tipo de abordagem mudou completamente no final dos anos 80 e começo dos anos 90 com o chamado “consenso de Washington”, um tipo de abordagem neoliberal, onde a ideia que predominava era “abertura”: “nós somos abertos, outros podem vir e é assim que a gente funciona e aprende”. Isso também chegou ao fim. Nós percebemos que existem limites nessa abordagem. A maioria das pessoas esqueceu o quão poderosos os governos são. Eles não são triviais. Basta ver o que está acontecendo nas guerras comerciais entre EUA e China. Em relação a isso, creio que houve até um erro de cálculo por parte dos chineses. Os governos chineses sempre foram fortes, porém eles assumiram que o governo estadunidense não fosse. Esse não é o caso. Apenas lembre quantos eleitores nos Estados Unidos sentem que seus interesses não estão sendo “protegidos” o suficiente e tentam resistir a isso [presença chinesa], então você tem o conflito. Eu acho que esse conflito [entre China e Estados Unidos] vai durar muito mais do que a pandemia, em termos de consequência. A pandemia é bastante dispendiosa. Ela indica o quão vulneráveis nossos sistemas são, porém ela vai chegar ao fim um dia e se tornar parte dos livros de história como qualquer outra pandemia no passado. O conflito entre os Estados Unidos e China, todavia, não vai acabar tão cedo. Ele interfere em coisas como a produção internacional, a transferência internacional de tecnologia, as relações entre países, entre outras coisas. Ficamos na torcida para que este conflito pare aí e não se mova para uma guerra de verdade. Qualquer pessoa familiar com a história antiga sabe que os grandes conflitos internacionais são sempre resultado da economia. Não queremos chegar neste nível, porém não podemos ignorar os desafios imensos que o mundo enfrenta agora. Para aqueles que estudam economia e inovação, como eu, estes tempos são realmente únicos.

Portal: De que outras maneiras estes dois eventos centrais de 2020, a pandemia de Covid-19 e as guerras comerciais entre China e Estados Unidos, afetaram a área de estudos em ciência, tecnologia e inovação?

Vonortas: Bem, é verdade que muito dinheiro tem jorrado para a corrida pela vacina nos últimos tempos, mas não é apenas isso que está em jogo agora. De fato, o aspecto da segurança é o mais fundamental aqui. Uma das coisas que o Covid-19 nos mostrou é o quão vulneráveis nós somos em relação à guerra biológica. A maior parte das pessoas não adentra no aspecto da segurança, porém basta ir em Washington DC e ver o que está sendo discutido ali. A principal discussão lá não é a doença [novo coronavirus], mas sim a segurança, mesmo com a imensa bagunça que fizeram lá [nos Estados Unidos] com a forma como lidaram com a pandemia. Quando falamos deste aspecto [segurança], trazemos a discussão para mais perto dos estudos em inovação e políticas. Falando mais abertamente, houve um grande impacto destes dois eventos no nosso campo de pesquisa, tanto na quantidade de dinheiro despejada nos projetos de pesquisa quanto em como olhamos para as políticas.

Portal: Mudando o assunto para a série de workshops que você está co-organizando juntamente com alguns outros pesquisadores, e cuja primeira edição aconteceu agora no começo de novembro. Sabemos que esta série reúne contribuições de uma futura publicação a ser lançada pela Oxford University Press com o título “Technology Upgrading and Economic Catch-Up” [“Avanço tecnológico e convergência econômica]. Poderia nos falar mais sobre a história por trás desta série de workshops e do livro?

Vonortas: Basicamente, a ideia do livro veio na cidade de Moscou, na Rússia. Na época, 2017, estávamos em uma conferência sediada na National Research University – Higher School of Economics, provavelmente a principal instituição da Rússia na área de economia e administração. Eles realizam uma conferência anual e, na época, nosso co-editor prof. Jeong Dong-Lee, que atualmente é conselheiro econômico do presidente da Córeia do Sul, deu uma palestra onde desenvolveu esta ideia a partir do Banco Mundial de que um bom número de países emergentes conseguiam dar um primeiro passo no caminho do desenvolvimento, aumentavam suas rendas, alcançavam um estágio de desenvolvimento onde estavam na chamada “renda média”, mas falhavam em dar o passo seguinte rumo ao topo e fechar a lacuna em relação às nações desenvolvidas devido ao fato de as políticas necessárias para este segundo passo serem distintas daquelas do primeiro.

Portal: Isto é, a tal da “middle-income trap” [“armadilha da renda média”].

Vonortas: Sim, mas sua apresentação girou em torno do que chamou de “middle innovation trap” [“armadilha da inovação média”, em tradução livre]. Em outras palavras, muitos países são bem-sucedidos em imitar tecnologias e em produzir cópias mais baratas de produtos. A grande dificuldade em dar o salto em direção à criação de produtos. Seu problema de pesquisa era, basicamente: “como ir da imitação para a criação?”. É isto que ele quis dizer com o termo “middle innovation trap”. Nós pensamos sobre aquele tópico, eu, ele e Dirk Meissner, outro co-editor do livro e anfitrião do evento, e decidimos que a ideia era grande o suficiente para se tornar um livro. Pedimos a opinião de Lee sobre a ideia, ele aceitou e decidimos partir com tudo para torná-la real. Considerando o tamanho da discussão e do projeto, decidimos solicitor a ajuda de outras pessoas em relação ao livro. Nós convidamos outros dois co-editores, prof. Keun Lee, da Seoul National University, e prof. Slavo Radosevic, da University College London. Ambos são pesquisadores de primeira e possuem uma contribuição substancial no estudo de convergência econômica. Radosevic, por exemplo, é provavelmente o pesquisador mais reconhecido no estudo das economias de transição, sendo um exemplo a transição de economias socialistas para capitalistas e assim por diante. Nós os convidamos, eles disseram sim e o resto é história. Após isso, apenas convidamos alguns outros colaboradores e terminamos o livro. Também realizamos um evento da Unicamp no ano passado, com o InSySPo tomando conta da organização. Ali, contamos com a presença de todos os autores apresentando os rascunhos de seus capítulos. Com os comentários e sugestões recebidos, estes finalizaram seus capítulos e o que temos agora é a versão final de seus trabalhos.

Portal: E agora que temos a versão final, o que esperar desta série de workshops?

Vonortas: Temos uma excellence coleção de capítulos. Basta olhar para o que tivemos nesta primeira edição. Tivemos contribuições interessantes que abordaram o processo de leapfrogging, por exemplo, que aborda como os países em desenvolvimento podem saltar [daí vem o termo “leapfrog”] adiante dos países desenvolvidos. JD Lee, o mentor da série, apresentou seu capítulo, bem como um grupo de pesquisadores da University College London, liderado por Slavo Radosevic. Uma discussão interessante foi apresentada por um dos autores sobre o caso da Rússia como um país que enfrenta desafios econômicos, com fraquezas consideráveis, em áreas fora daquelas em que tem uma boa performance, como energia, tecnologia militar e defesa. Nós começamos a série com discussões no nível macroeconômico, porém nos movemos para discussões microeconômicas nos próximos workshops, encerrando a discussão com um workshop sobre meio-ambiente e caminhos “verdes” para o desenvolvimento.

Por Guilherme Cavalcante Silva, bolsista Labjor Unicamp, especial para o Portal Campinas Inovadora