“No ecossistema de Campinas já existem atores ou, melhor dizendo, “ilhas” de governança. A proposta do projeto Transformação digital em Campinas é que se constitua um fórum onde esses diversos atores possam estar representados e onde se possa construir uma visão mais unificada. Tal visão não será estática ou engessada, mas sim dinâmica, de modo que represente o máximo possível dos agentes atuantes no ecossistema de inovação da RMC”. Esta é a segunda reportagem da série que vai tratar sobre o estudo Transformação digital em Campinas, uma pesquisa conduzida por um grupo de pesquisadores ligados ao Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), da Unicamp, e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID. O objetivo geral do estudo foi contribuir para a construção de uma estratégia de transformação digital da cidade de Campinas, com um recorte direcionado para Internet das Coisas (IoT) e indústria 4.0 (I.4.0).
A governança foi considerada uma das diretrizes prioritárias para superar os desafios horizontais (aqueles que geram impacto sistemático) para consolidação do ecossistema de inovação e empreendedorismo da Região Metropolitana de Campinas (RMC). De acordo com o estudo, no processo de transformação digital da cidade é prioritário articular as principais lideranças do ecossistema por meio de um projeto estruturante e/ou ideia-força para o ecosssitema da RMC que aglutine o maior espectro de interesses e ainda fortalecer organizações âncoras para promover o crescimento do ecossistema.
A perspectiva dessa governança, entretanto, não é uma estrutura tradicional, verticalizada e hierarquizada, mas uma governança em rede. “O modelo em rede prevê que a governança de determinado sistema (neste caso, de um ecossistema de inovação), envolva uma ou mais redes de atores atuantes na dinâmica de tal sistema, em detrimento de um modelo centralizado de tomada de decisões e ações”, explica a economista Camila Zeitoum, pesquisadora do Laboratório de Estudos Sobre Organização da Pesquisa e da Inovação, ligado ao DPCT da Unicamp e uma das autores do estudo. Segundo ela, é fundamental o envolvimento dos mais diversos stakeholders atuantes no âmbito do sistema para contemplar os mais diversos interesses e necessidades, de modo que as ações propostas sejam direcionadoras e permitam, como consequência de sua implementação, o melhor desempenho desse conjunto de atores. “No caso do ecossistema de inovação da RMC, as redes de agentes podem incluir lideranças empresarias representativas de grandes, médias e pequenas empresas, além de outras entidades setoriais como associações de P&D que envolvam também os gestores de instituições de ciência e tecnologia (universidades e institutos de pesquisa, públicos e privados); associações de empreendedores e pré-empreendedores; gestores públicos; bem como especialistas no desenvolvimento de soft-skills; gestores de institutos de pesquisa; e, não menos importante, cidadãos, que compõem parte importante dos potenciais usuários das aplicações que se pretende alavancar quando se implementam ações voltadas à dinamização do ecossistema local de inovação”, aponta Zeitoum.
Na cidade de Campinas existem 280 aplicações/soluções em uso pela Prefeitura Municipal, um número que caracterizaria como alto o nível de digitalização dos serviços públicos no município. No entanto, o conhecimento de tais aplicações pelos potenciais usuários e mesmo por integrantes das secretarias da PMC é baixo, o que não permitiria considerar que o município tenha chegado ao estágio de e-Government propriamente dito. “Tomando por base o exemplo de um ecossistema que tenha como parte de sua visão alcançar o nível de governo digital, isso indica que não basta haver boa capacidade institucional e alto nível de articulação entre as próprias esferas e órgãos governamentais; é necessário também o engajamento dos cidadãos às iniciativas propostas, conforme preconizado pela OCDE, em especial no que tange à identificação e especificação das demandas e consequente uso dos serviços públicos digitais”, aponta a pesquisadora.
Fragmentação – A viabilização do modelo de governança em rede requer o desenho de uma estrutura compatível que permita integrar as entidades em questão (agregadoras de agentes) nesse processo, de modo que, uma vez definida a visão de futuro comum aos envolvidos, seja possível a convergência de esforços. Entretanto, no cenário atual do ecossistema de inovação de Campinas, um dos principais problemas é um tipo de segmentação da reflexão estratégica sobre o desenvolvimento tecnológico da RMC. “Isso parece decorrer da tendência de o conjunto de atores, na forma de micro-redes, aqui atuantes fazerem uma reflexão dos impactos aos quais eles próprios estão sujeitos. Seria natural, por exemplo, que os grandes institutos de pesquisa, tivessem um foco maior nos aspectos da legislação – especialmente ligados à Lei de Informática ou às limitações de instrumentos de fomento, inclusive de âmbito nacional – que impactam diretamente a atuação dos mesmos.
Já as startups, por outro lado, tendem a observar e refletir mais sobre a criação de redes de inovação, com foco menos tecnológico e mais em negócios e impedimentos para a realização dos negócios, por exemplo; a visão empreendedora e sua disseminação, entre outros”, explica a economista. Existe, portanto, uma tendência de olhar para um aspecto mais preponderante, por parte de cada grupo, e com isso não se olha o todo: aspectos relacionados a tecnologia, business, políticas públicas, infraestrutura tecnológica – todos esses elementos são necessários para o ecossistema e devem ser considerados concomitantemente.
Um exemplo de ainda ser incipiente uma cultura comum no ecossistema de inovação de Campinas é a dinâmica que se verifica como resultado do número crescente de espaços de coworking, onde são compartilhados não somente infraestrutura, espaços de trabalho e ambientes para reuniões, mas onde são também realizados eventos que visam promover o debate acerca de questões relevantes para o ecossistema de inovação. “Isso é algo bastante positivo, porém entendemos que os eventos em questão tendem a ser frequentados principalmente por aqueles que se utilizam daquele espaço no dia-a-dia, com o risco de fragmentação ou segmentação das reflexões entre os diferentes grupos que promovem iniciativas desta natureza. É importante que os encontros e reflexões aconteçam, mas precisamos trabalhar para garantir a comunicação entre os diferentes grupos”, afirma Zeitoum.
O mesmo ocorre no ambiente da universidade, em departamentos específicos, ou entre associados a fóruns específicos, que permitem a interação entre alguns atores do ecossistema, porém restrita no sentido de não serem capazes de contemplar toda a diversidade de atores e instituições envolvidas no ecossistema de inovação da RMC. “É natural, até certo ponto, que aconteça uma fragmentação; mas precisamos trabalhar para promover a articulação entre as todas partes, que são igualmente importantes, com implicações para a forma como se dá a reflexão e a tomada de decisão sobre ações voltadas ao ecossistema local, e que se pretende que sejam estruturantes e necessárias ao conjunto de agentes aqui atuantes”, aponta.
Lideranças – Em um ecossistema de inovação, as lideranças exercem um papel fundamental, seja na construção de uma visão aglutinadora para os demais atores, seja na capacidade de mobilizar os atores para uma ação ou ainda atuando diretamente como catalisador de ações estratégicas. A atuação dessas lideranças pode conduzir os demais atores a uma nova cultura, convocá-los para a construção de uma nova agenda de prioridades e favorecer a articulação de novos recursos e investimentos que viabilizem essa agenda. Quando se trata de um ecossistema, essa liderança pode ser de três tipos: visionária, aquela visível, que propõe e dissemina uma visão de futuro para o ecossistema. A mobilizadora, que reúne e mobiliza atores locais para desenvolver e conduzir um novo conjunto de prioridades e atividades. Há ainda a liderança catalisadora, que traz novos recursos e investimentos que incentivam uma agena de colaboração e demonstra um compromisso com o desenvolvimento do ecossistema, formando uma rede de parcerias.
Há uma dispersão dos três tipos de lideranças no ecossistema de inovação de Campinas. Os destaques são a Unicamp, Núcleo Softex e Prefeitura Municipal de Campinas (PMC). Ou seja, aqueles que mais interagem com os agentes do ecossistema de inovação da RMC. Segundo os pesquisadores, nas entrevistas realizadas com atores do ecossistema, foi reforçado o potencial das universidades na liderança e para lidar com as assimetrias entre os atores do ecossistema, podendo atuar, portanto como “ator neutro” necessário para a promoção de projetos conjuntos entre mais empresas. No entanto, caso a universidade desempenhasse esse papel de liderança de forma mais ativa seria necessária uma visão mais ousada, tanto de mercado, quanto para formação dos recursos humanos. “Mais do que a governança, acredito que o entendimento do papel de cada ator do ecossistema seja o mais fundamental. Ter um grupo de trabalho isento, sem conflito de interesses, que estimule esses diferentes atores, é um caminho muito interessante, com precedentes positivos por outros ecossistemas do mundo”, apontou Wagner Foschini, co-founder e CEO da WeMe, hub de inovação e empreendedorismo da cidade.
Cenários positivos – Convém destacar, no entanto, que no quesito interações, alguns fatores desenham boas perspectivas para o ecossistema de inovação da cidade de Campinas (esse diagnóstico baseia-se nos resultados da pesquisa com empresas ofertantes de tecnologia). São eles a maior articulação dos atores da áreas do centro da cidade, formando espaços de coworking, a ação do Conselho Municipal de C&T&I, particularmente no Plano Estratégico Campinas Cidade Inteligente (PECCI) e ainda a iniciativa de criar um Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (HIDS) a partir da área da Fazenda Argentina, vizinha ao campus da universidade em Barão Geraldo, projeto coordenado pela Unicamp e com participação da PUC-Campinas, da Prefeitura de Campinas, mas que tem evoluído no sentido de engajar outros atores e criar um distrito sustentável na região do Ciatec 2. Tem ocorrido ainda um movimento crescente de articulação em duas frentes e que vem convergindo entre si: institutos de pesquisa de maior porte vinculados à Fundação Fórum Campinas Inovadora (FFCi) e ao Conselho Municipal de C&T&I e as empresas de pequeno porte e startups, vinculadas à rede de coworkings e núcleos de empreendedorismo, como a Campinas Tech.
Visão de futuro – Além de promover um adensamento das interações entre os diferentes atores do ecossistema de inovação de Campinas, uma boa governança poderia aglutinar esses mesmos atores em torno de uma visão de futuro. Conforme aponta o estudo, a construção coletiva de uma visão de futuro para a RMC pode ser um instrumento estratégico para esta articulação. Esta construção também pode estimular maior sentimento de pertencimento ao ecossistema e poderá estruturar laços de confiança entre atores que hoje competem ou que desconhecem possibilidades de ações cooperadas. Reforçar a identidade do ecossistema pode estimular novos – e mais direcionados – investimentos públicos e privados na RMC e o aprimoramento dos mecanismos de financiamento e incentivos existentes, uma vez que as necessidades e objetivos deste ecossistema serão mais conhecidos e inseridos na agenda do dia.
Para Foschini, no estágio de maturidade do ecossistema de Campinas, essa visão de futuro deveria ser abrangente, com foco no desenvolvimento do empreendedorismo e do crescimento independentemente do setor. “A visão de futuro deveria ser em torno da tese inicial de impacto e resultado das iniciativas realizadas, com foco nos resultados de crescimento dos negócios impactados por iniciativas de empreendedorismo”, acredita. Segundo ele, essa visão deveria estimular, colher e comunicar histórias positivas de empreendedorismo, criando uma narrativa sobre a importância do empreendedorismo para desenvolvimento da cidade.
Isso poderia ser feito, em primeiro lugar, com um planejamento sistêmico com lideranças de empresas, ICTs, a Prefeitura de Campinas, startups e associações com objetivo de identificar os principais interesses e construir uma visão de futuro e projetos estruturantes. Em segundo lugar, a expansão do Conselho Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação (CMCTI) por meio da implementação de instrumentos de consulta estruturada ao ecossistema e da divulgação das decisões para ampliar a interação com a diversidade de atores e o senso de pertencimento para participação. Além disso, essa expansão deveria passar pela articulação com representantes de grandes e médias empresas inovadoras, bem como aceleradoras, incubadoras ou redes de startups. “O envolvimento, nos processos de reflexão e tomada de decisão, dos mais distintos agentes atuantes no contexto do ecossistema seria a base para garantir o sentimento de pertencimento ao ecossistema local de inovação e consequente aderência e engajamento às ações propostas”, conclui Zeitoum.
Construindo um futuro sustentável – Um dos caminhos indicados pelo estudo Transformação digital em Campinas é apoiar a criação de um Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (HIDS), projeto que está sendo coordenado pela Unicamp e que envolve um plano de ocupação de uma área ao lado do campus da Unicamp e o território do Ciatec 2. A Prefeitura de Campinas e a PUC-Campinas são parceiras da iniciativa. De acordo com o estudo, unir esforços dos atores do ecossistema de inovação de Campinas em torno desse projeto pode catalisar oportunidades para o ecossistema. Para isso poderiam ser organizadas ações para o desenvolvimento do modelo estratégico do HIDS e dos processos de seleção e monitoramento de projetos. Além disso, seria necessário articular parcerias estratégicas, nos níveis municipal, estadual e nacional, com instituições como a Fapesp, Agemcamp, secretarias estaduais, ABDI, CNI, Finep e Embrapii.