O impacto da pandemia de Covid-19 na atividade empreendedora e de startups ainda é incerto, quando se trata de números e estatísticas. Porém, se há uma palavra-chave que se encaixa na atuação empreendedora durante a pandemia e promete permanecer por mais algum tempo, esta certamente não é destruição ou encerramento, e sim adaptação. Uma pesquisa realizada pelo Sebrae durante a pandemia, abrangendo um universo de 17,2 milhões de pequenos negócios, mostrou que apenas 3,5% dos empreendedores resolveram fechar seus negócios de vez, enquanto pouco mais de um terço revelou adaptar suas iniciativas e formas de funcionamento para sobreviver e prosperar (por que não?) em tempos de vacas magras. Embora o cenário possa parecer pessimista, existem motivos para nutrir expectativas positivas em relação ao cenário de startups e empreendedorismo no Brasil? Se sim, quais as características necessárias para que os tempos de pandemia sejam também os tempos de inovação e ideias renovadoras no cenário empreendedor?
Um estudo interdisciplinar conduzido por pesquisadores de diversas universidades no Brasil, e coordenado por dois investigadores ligados ao programa SPEC InSySPo: Bruno Fischer e Sérgio Salles, ambos docentes na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pode fornecer respostas para esses questionamentos. O estudo foi a mais recente avaliação do Pipe, uma iniciativa de fomento ao desenvolvimento de pequenas empresas orientadas à inovação, em conjunto com a universidade, liderada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A iniciativa, que surgiu em 1997, espelhando o programa estadunidense Small Business Innovation Research (SBIR), tem, entre seus objetivos, “apoiar a pesquisa em ciência e tecnologia, promover o desenvolvimento empresarial, a inovação e aumentar a competitividade das pequenas empresas”, tudo isso através de aportes financeiros que chegam a até R$ 1,2 milhão por projeto apoiado. Uma iniciativa ousada para reverter um quadro complicado no cenário brasileiro: o número ainda tímido de projetos inovadores no empreendedorismo nacional.
“O empreendedor brasileiro médio não é inovador”, afirma Fischer, ressaltando a importância de iniciativas como a da Fapesp, especialmente em um contexto atual de distância entre empreendedorismo e pesquisa científica no Brasil. “Quando você pega a abertura de empresas de modo geral, no Brasil, ela geralmente não tem conteúdo de inovação. O empreendedor no Brasil tende a buscar atividades de menor risco, que acabam tendo um menor impacto no tecido econômico, enquanto a inovação no contexto empresarial ocorre bem mais frequentemente em empresas que surgem do ambiente universitário”. Segundo os dados da avaliação do Pipe, no período entre 2006 e 2016, 68% das spin-offs, nome dado a uma empresa que surge a partir de uma outra empresa, grupo de pesquisa em universidades ou de organizações governamentais, financiadas pelo projeto surgiram no meio universitário. Vale lembrar que esse ano, em meio a pandemia, a Unicamp alcançou a marca de mil empresas-filhas cadastradas na agência de inovação da universidade. Uma luz no fim do túnel? Para a pesquisadora Camila Zeitoum, parte da equipe responsável pela avaliação, a resposta é sim. “É possível que as pequenas empresas e as startups, especialmente surgidas de contextos intensivos em conhecimento como universidades, ganhem mais espaço agora”, é seu diagnóstico.
A necessidade de maior investimento na relação entre universidades e indústrias como meio de promover a inovação no contexto empreendedor brasileiro é apenas uma das várias leituras possíveis a partir do relatório de avaliação do Pipe. A pesquisa contemplou um universo de 400 projetos aprovados e 2700 denegados, entre 2006 e 2016, no contexto do Pipe, sendo realizada por meio de questionário – respondido por um total de 481 empresas[i]. O auxílio da Fapesp visa financiar pequenas empresas, aqui definidas como aquelas com até 250 funcionários, ao longo de três fases:
Em geral, os projetos financiados pelo Pipe são de empresas que não chegam a dez funcionários. A média geral de empregados nas empresas apoiadas pelo Pipe é de seis funcionários, segundo o relatório. Esse dado é importante ao apontar uma dificuldade na análise de pequenas empresas no Brasil, já que bases de dados como a Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), organizada pelo IBGE e principal levantamento na área de inovação no país, contemplam apenas empresas com mais de dez funcionários. “É uma informação relevante que se perde, um universo que fica de fora. As empresas são muito pequenas. A maior parte é constituída de startups, spin-offs. A gente chegou, no projeto, a entrevistar algumas delas. Teve uma que começou com somente uma pessoa. Hoje ela cresceu, mas somente vinte anos depois. Teve uma outra que era liderada por dois meninos da USP, então estas empresas costumam começar muito pequenas”, aponta Fischer.
A invisibilidade’ destes projetos reforça a importância de projetos como o Pipe, em um contexto de dificuldade para pequenas empresas engatarem no Brasil. Dados do relatório apontam que a média de funcionários nas empresas financiadas pelo programa salta para 11 – somente aí podendo ser avalizadas em bases como a Pintec – no segundo ano após o encerramento do apoio financeiro para os projetos. Um impacto positivo na economia e no mercado de trabalho que corre o risco de ser apagado sem financiamentos como esse. “Essas empresas, quando estão em estágio inicial, têm bastante dificuldade em conseguir recursos. Quando elas saem do ambiente universitário, e estamos falando de coisas que têm tecnologia de ponta, não há investidores privados com interesse em colocar dinheiro nessas empresas. Quando elas decolam, quando têm clientes, daí aparece investidor, mas na fase em que elas estão desenvolvendo protótipo, que é onde entra o financiamento do Pipe, são poucas as alternativas. O papel do Pipe é crítico em preencher este vácuo”, reforça Fischer.
Os resultados da avaliação mostram também um avanço do número de registro de patentes, um fator-chave no avanço tecnológico, por parte das empresas beneficiárias do programa da Fapesp. 55% dos direitos de propriedade intelectual (DPI) depositados no Brasil pelas empresas beneficiárias do Pipe foram consequência direta do projeto. Além disso, a porcentagem de projetos que se traduzem em produtos inovadores graças ao Pipe chegou a 80% do total. Dados que mostram a importância de programas de fomento como este para o cenário empreendedor brasileiro, especialmente em um período crítico como o atual.
O sucesso de iniciativas como o Pipe é ameaçado tanto por fatores internos, como dificuldade de coleta de dados e contingenciamentos financeiros devido à pandemia, como por fatores externos, como a falta de uma “cultura de risco” no país e de uma relação mais próxima entre indústria e produção científica/acadêmica. Sobre a coleta de dados, por exemplo, “buscamos dados de empresas beneficiadas pelo projeto que datam de quinze anos atrás, porém mesmo dados básicos como contatos telefônicos e de e-mail, por exemplo, podem estar desatualizados”, revela Zeitoum. Uma sugestão apontada no relatório é a de institucionalizar formulários que possibilitem um acompanhamento dos projetos desde o momento da inscrição destes até o período após a sua conclusão, viabilizando relatórios periódicos de suas atividades e resultados por até cinco anos após a submissão da proposta à Fapesp. “Isso permite que nós, avaliadores, tenhamos condições de entender os impactos de projetos como esse sem a necessidade de correr, muitas vezes em vão, atrás dessas informações anos e anos depois”, complementa Fischer.
O maior desafio, porém, pode não estar na quantidade de novas iniciativas empresariais. Apesar de dados como os publicados pelo Sebrae em outubro deste ano, apontando que os nove primeiros meses de 2020 registraram um aumento de 14,8% no número de pequenas empresas no Brasil, serem animadores, parecerem animadores, é a orientação destas empresas que preocupa Fischer. Em sua opinião, falta uma paixão maior por riscos no Brasil. “Mesmo com a pandemia e um momento econômico difícil, o Pipe ainda assim não coloca todo o dinheiro que podia ceder por falta de bons projetos. Boa parte dos empreendedores partem para atividades de menor risco. É mais fácil faltar projetos com potencial inovador do que recursos”.
Sem uma ‘cultura de risco’ e orientada para atividades inovadoras, a tendência é de maior isolamento entre universidades e polos de pesquisa, onde, em geral, há um maior desenvolvimento de sistemas de inovação; e investidores e empresas. Iniciativas recentes como o programa Capacitação 4.0, criado pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação (Embrapii) com o objetivo de ligar estudantes de instituições de ensino superior ou técnico e indústrias intensivas em inovação a partir da resolução de problemas reais destas empresas, são tentativas de mudar esse cenário. Outro exemplo de arranjo capaz de potencializar o desenvolvimento de startups de base tecnológica e as interações para inovação são os parques tecnológicos. Além da infraestrutura para colaboração e espaços comuns, que podem ser utilizados pelas empresas de portes diversos instaladas nos parques, alguns deles hospedam incubadoras e aceleradoras, e oferecem serviços de apoio aos empreendedores.
“Há um potencial claro para o surgimento de startups e isso tem sido cada vez mais reconhecido no Brasil. Um número crescente de editais buscam promover a interação entre empresas grandes, e mesmo multinacionais, com empresas pequenas, médias e até com foco específico em startups para resolução de desafios colocados pelas primeiras, sendo que em alguns casos as propostas são desenvolvidas em ambientes colaborativos. Essa é para mim uma das luzes no final do túnel”, acredita Zeitoum.
O relatório completo da avaliação do Pipe pode ser acessado aqui. A avaliação foi liderada pelo Laboratório de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), do Instituto de Geociências da Unicamp.
[i] Estas 481 incluem projetos aprovados e rejeitados no período.
Por Guilherme Cavalcante Silva, bolsista Labjor Unicamp, especial para o Portal Campinas Inovadora