Mobilidade elétrica: o que o Brasil pode aprender com a experiência estrangeira

Estudo da Unicamp investigou o que faz países avançarem na inserção de veículos elétricos e o porquê de o Brasil não ser um deles. Por Paula Penedo


Políticas para promoção da eletromobilidade têm sido fundamentais para adoção de veículos elétricos como meio de transporte ao redor do mundo. Crédito: Pixabay

Nos últimos anos, o mercado mundial de veículos elétricos tem passado por um forte aquecimento, com o aumento constante da frota de carros comercializados. De acordo com dados da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), mais de um milhão de carros elétricos foram vendidos em 2017. Esse número pode parecer baixo, mas representa um recorde, com um número total de carros elétricos ultrapassando os três milhões ao redor do planeta, um aumento de mais de 50% em relação ao ano anterior.

Essencial para esse avanço foi a adoção, por alguns países, de políticas voltadas à promoção da eletromobilidade, com a construção de um arcabouço institucional que permita e facilite a sua efetivação como meio de transporte. Essa conclusão é parte dos resultados de um trabalho desenvolvido por Flávia Consoni, Altair de Oliveira, Edgar Barassa, Jenyfeer Martínez, Marcos Marques e Tatiana Bermúdez, pesquisadores do Laboratório de Estudos do Veículo Elétrico (LEVE) da Unicamp. O estudo fez uma análise comparativa dos sistemas de governança em mobilidade elétrica do Brasil e dos países líderes na produção e comercialização desses veículos: Estados Unidos, Japão, China, Alemanha, França e Noruega.

O estudo foi encomendado ao LEVE pelo projeto Mobilidade Elétrica e Propulsão Eficiente (PROMOBE-e), uma parceria entre o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) do Brasil e o Ministério Alemão de Cooperação Econômica para o Desenvolvimento, por intermédio da Agência Alemã de cooperação internacional e posteriormente publicado em um ebook. O objetivo foi tentar entender por que alguns países avançam mais do que outros na inserção de veículos elétricos em seus territórios a partir da investigação da trajetória de difusão e adoção desses veículos nos países mencionados.

De acordo com Flávia Consoni, líder do LEVE e docente do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp, existem muitas resistências à adoção dos veículos elétricos no mundo. Uma delas é o fenômeno chamado “ansiedade por autonomia” (range anxiety), que se refere ao medo que muitas pessoas têm da eletricidade acabar durante as viagens e não haver local para recarregar o carro, uma vez que os eletropostos não existem na mesma frequência que os postos de combustível.

Pesquisadores do Laboratório de Estudos do Veículo Elétrico (LEVE) da Unicamp

Outro ponto é a questão financeira, visto que o carro elétrico ainda é muito caro. Na média, ele custa o dobro do valor de um veículo similar a combustão interna, diferença largamente atribuída ao preço da bateria, que chega a representar até 70% do custo total do veículo. No Brasil, por exemplo, o carro 100% elétrico mais barato custa por volta de R$170 mil, já com todos os descontos embutidos. Mas há uma expectativa de redução cada vez maior do preço visto que o valor da bateria caiu significativamente, de cerca de U$1000 kw/hora em 2010 para U$350 kw/hora em 2016. “Existem alguns estudos que indicam que em 2025 o preço do kw/hora já vai tornar o carro com um custo semelhante ao de combustão interna. Então, pelos próximos anos a gente ainda vai ter um carro que custa mais caro, mas não mais do que dez anos.”, alega Consoni.

Para a realização do estudo, os pesquisadores procuraram responder três perguntas básicas sobre cada uma das nações analisadas: Quais são as motivações para introduzir e desenvolver a eletromobilidade; quem são os atores que participam do sistema de governança da eletromobilidade e como os atores do sistema governam o segmento dos veículos elétricos em seus países. Como resultado, os autores concluíram que alguns fatos históricos relacionados a temas como mudança climática, saúde pública, inovação e segurança energética incentivaram a implementação de medidas pró-eletromobilidade na experiência estrangeira, ainda que em graus distintos entre os países.

As crises do petróleo das décadas de 1970 e 2000, por exemplo, evidenciaram a necessidade de diversificar as matrizes energéticas para além dos combustíveis fosseis ao mesmo tempo em que o movimento ambientalista, iniciado nos anos 1960, começou a chamar atenção para a importância de reduzir as emissões dos gases do efeito estufa. “O setor de transportes tem uma participação muito grande nas emissões, então, para muitos países, cumprir com as demandas da COP21 significa mexer nessa área. Mas não é o caso do Brasil, que consegue atingir seus compromissos por outros meios, como a redução do desmatamento”, explica Consoni.

Mais recentemente, países como China, Japão e Estados Unidos começaram a sofrer os efeitos da forte urbanização na saúde da população, como problemas respiratórios relacionados à qualidade do ar nas grandes cidades e auditivos devido aos ruídos dos carros. Somente na China, mais de um milhão de pessoas morreram em 2017 vítimas de doenças relacionadas à exposição a material particulado, como AVC e câncer de pulmão, de acordo com dados do State Global Air.

Além disso, os setores automotivos, eletroeletrônico e de energia passaram a ver na mobilidade elétrica uma nova janela de oportunidades, uma vez que essa é uma área que ainda não está consolidada. O exemplo que se destaca é o da China, onde diversas empresas foram criadas com o objetivo de produzir carros elétricos, o que levou esse país a ultrapassar os Estados Unidos e alcançar a primeira colocação mundial na inserção desses veículos. “Um dos casos exitosos é o da empresa BYD, que significa Build Your Dreams e nasceu para trabalhar com energia renovável. Hoje ela se coloca como uma importantíssima montadora que, inclusive, está atuando aqui em Campinas com uma operação de montagem de ônibus elétricos, além de painéis fotovoltaicos”, revela Consoni.

O caso do Brasil – Ao contrário do que ocorre nas experiências dos demais países analisados, o Brasil não desempenha um papel relevante no segmento da eletromobilidade. Segundo dados da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), no primeiro semestre de 2018 foram comercializados no país apenas 136 unidades de veículos puramente elétricos e plug in e cerca de 3159 veículos híbridos, números que representam um percentual muito baixo na comparação com o total de veículos comercializados por aqui.

Flávia Consoni relata que embora o país possua há mais de quinze anos inciativas de incentivo à eletromobilidade, tais programas não tinham a robustez necessária e nem eram articulados entre si, além de enfrentarem muita resistência das empresas automobilísticas tradicionais que continuam focadas no motor a combustão interna. Para se ter uma ideia, somente em 2018 foi regulamentada a venda de energia elétrica no país, pela Agência Nacional de Energia (ANEEL), já que até então somente as distribuidoras podiam comercializá-las, restrição que colocava um forte entrave para novos investimentos direcionados à consolidação da infraestrutura de eletropostos para abastecimento dos veículos elétricos com energia elétrica.

Com a Resolução Normativa no 819/2018, aprovada em junho de 2018, distribuidoras, postos de combustíveis, shopping centers e demais empreendedores poderão oferecer serviços de recarga de veículos elétricos a preços livremente negociados, a chamada recarga pública. “Isso significa que agora um comerciante pode colocar um eletroposto em seu estabelecimento e fornecer a energia de graça para clientes ou então cobrar um valor pelo tempo de abastecimento”, explica a docente.

Além disso, parte dos impostos sobre veículos elétricos também foi reduzida, o que ajudará a diminuir o preço dos veículos. Como os carros elétricos estão classificados em “outras tecnologias”, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) era de 25% sobre o produto. Com a Rota 2030, nova política industrial brasileira, que substituiu o Inovar Auto, esse IPI passou para uma taxa que vai de 7% a 20%, valor elevado, apesar de aliviar um pouco o preço.

A principal questão, no entanto, é que ao contrário do que ocorreu nos demais países analisados, falta ao Brasil uma situação-problema que incentive a adoção da eletromobilidade. Ou seja, não existe um fato social ou ambiental latente que promova um direcionamento das ações públicas e privadas nessa direção, argumentam os autores deste estudo. O problema da balança de pagamentos com importação de gasolina foi equacionado com o programa Proálcool e o país consegue atingir os seus objetivos no Acordo de Paris com o uso de outras tecnologias, como o bioetanol.

Flex made in Brazil – De acordo com o estudo do LEVE, a participação de renováveis na matriz energética brasileira em 2015 foi de 41,2%, o que está acima da média mundial de 13,5%. Além disso, a pressão ambientalista no Brasil sempre foi suprimida por interesses de outras naturezas e a visão de desenvolvimento de novos setores econômicos por meio de tecnologias inovadoras ainda é recente e insuficiente. Mas a professora argumenta que, ao invés de serem vistos como motivo para não aderir à eletromobilidade, esses fatores devem ser percebidos pelo seu potencial de abrir caminhos. O setor dos veículos elétricos ainda não tem uma liderança consolidada no mundo e o Brasil pode usar esse segmento tanto para contribuir para o desenvolvimento tecnológico quanto para ampliar a sustentabilidade da sua economia. Embora algumas pessoas argumentem que os veículos elétricos concorreriam com o bioetanol, que já é uma tecnologia brasileira, e acabariam prejudicando esse mercado, Flávia entende que bioetanol e eletricidade, em conjunto, poderiam ampliar a eficiência dos veículos.

Isso porque atualmente existem no mundo três variações de veículos elétricos. O primeiro é o 100% elétrico, que possui uma bateria carregável na tomada; o segundo é um híbrido, movido à combustão interna, mas com uma bateria interna a fim de ampliar a eficiência energética do carro; e o terceiro é um intermediário, chamado híbrido plug in, com uma bateria e um motor a combustão interna, em que o consumidor escolhe como abastecer: se no posto de combustível ou usando eletricidade. O que Consoni argumenta é que pode ser desenvolvido um híbrido plugin flex, movido à bateria e etanol, à semelhança do que está ocorrendo com a versão hibrida à etanol.

Ela ressalta, entretanto, que dificilmente irá ocorrer uma mudança de mão única do motor a combustão interna para o elétrico. O que tende a ocorrer é a convivência entre vários tipos de veículos de baixa emissão. “Particularmente, a gente trabalha aqui com a possibilidade de que essa mudança não será nem de ruptura e nem de imediato. A história é um processo evolutivo e, portanto, os elétricos vão se combinar por muito tempo com essa tecnologia intermediária. Pode até ser a híbrida plugin, mas a flex também será muito importante porque ela te dá uma eficiência energética maior e não quebra a cultura de ir até o posto abastecer”, finaliza.

Por Paula Penedo em colaboração do Labjor Unicamp para o Portal Campinas Inovadora.