Os desafios da mobilidade inteligente: o caso do SwissPass

Referência de integração da rede de transporte, sistema de cartão único também é alvo de controvérsias. Por Patricia Mariuzzo

SwissPass integrou todos os modais de transporte na Suíça. Crédito: Pixabay

A mobilidade é um dos grandes desafios do urbanismo contemporâneo e estabelecer sistemas de transporte sustentáveis e inteligentes ganhou ainda mais destaque no paradigma das smart cities, caracterizadas por redes autônomas e interconectadas. Buscando minimizar congestionamentos causados pelo uso intenso de automóveis há alguns anos a Suíça têm feito investimentos em tecnologias para o transporte público. Foi nesse processo que, em 2011, o governo federal daquele país lançou uma chamada pública para apresentação de projetos de tecnologia para mobilidade urbana. Em 2015 foi lançado o SwissPass, sistema nacional de mobilidade que integra sete modais de mobilidade: ônibus, trem, metrô, barco, bicicleta, carro compartilhado e esqui. A principal inovação do sistema foi integrar o espaço urbano de todo o país por meio de um cartão de identidade da mobilidade inteligente. A construção do modelo, entretanto, envolveu procedimentos complexos , com diversos atores envolvidos, fazendo emergir controvérsias e resistências.

Em 2017, o sistema contava com mais de 2,2 milhões de usuários, quase o dobro da população da cidade de Campinas. 415 empresas, ligadas a todos os modais de transporte, participam do modelo de integração, sendo 240 apenas de ônibus, metrô e trem. De acordo com o Swisstravel (2017), que gerencia o sistema e a venda dos cartões, o sistema é composto por mais de 28 mil quilômetros de ferrovias, 869 rotas de ônibus e permite o deslocamento de mais de 1,5 milhão de passageiros por dia em todo o país. O índice de pontualidade é de 87,8% nos modais de transporte. “Foi a primeira vez no mundo que um país unificou todos os modais e todas as empresas de mobilidade por meio de uma tecnologia”, explicam os pesquisadores Marcela de Moraes Batista Simão e Rodrigo José Firmino. Em pesquisa conduzida na Escola de Arquitetura e Design, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, eles analisaram como se deu a implantação do SwissPass e as controvérsias envolvidas ao longo desse processo. Os resultados do estudo foram publicados na última edição dos Cadernos Metrópole.

Mais do que mobilidade, o SwissPass se configurou em um sistema de serviços. Além do acesso aos meios de transporte, o cartão está associado a museus, redes de hotéis e à biblioteca nacional, dependendo do tipo de cartão que o usuário adquire. Desenhado para atingir toda a população que utiliza o transporte público e, ao mesmo tempo, incentivar essa opção, há diversos tipos de segmentação e categorias de acordo com o tipo de utilização e perfil do usuário. Por exemplo, há descontos crianças, estudantes, para casais em que um dos parceiros têm o cartão e para pessoas com qualquer tipo de redução de mobilidade. “Apesar de todos os benefícios aparentes que o sistema de mobilidade inteligente possa ter proporcionado à sociedade suíça e ao meio urbano, ele não foi implantado sem disputas claras de poder e muitas controvérsias, afirmaram Simão e Firmino.

Privacidade e controle – Houve resistência também por parte do escritório federal de proteção de dados. Responsável por avaliar o sistema como um todo, a instituição questionou o SwissPass por considerá-lo uma violação ao direito à privacidade porque, ao criar uma plataforma nova e única, todos os dados dos cidadãos estariam disponíveis para as empresas públicas de mobilidade. O escritório considerou o sistema como tendo forte potencial invasivo e de monitoramento por ser um dispositivo de coleta, organização e integração de dados cadastrais georeferenciados dos cidadãos ou portadores do cartão. “Para proteger os usuários do uso indevido dos seus dados, o escritório federal, por meio de uma lei federal, impôs à empresa operadora do sistema – a SBB – que os dados fossem destruídos em no máximo 90 dias. Esse foi um dos principais impasses para a implantação do sistema em todo o território nacional”, de acordo com Simão e Firmino.

O caso nos ajuda a lembrar que as tecnologias não são neutras, mas sempre uma construção social submetidas a diferentes interesses e com efeitos nem sempre previstos. A unificação dos dados dos usuários de um cartão inteligente em uma plataforma única significa que, na prática, tanto o governo quanto a SBB têm poder sobre os dados da população configurando um ambiente em que, de acordo com os autores, tecnologias inteligentes com plataformas igualmente inteligente têm o potencial de controlar a “bio” da população, ou seja, a vida. “A vida passa a ser permeada por biopoderes cibernéticos e ciborgues, a cargo de empresas privadas e governamentais que detém o poder da informação eletrônica dos cidadãos”, dizem.

Resistências – A criação do SwissPass também dependeu da atuação de pelo menos quatro grupos. O principal grupo é composto pela Swiss Federal Railway (SBB) que detém 70% do mercado de mobilidade na Suíça, que coordenou o processo ao negociar com as 240 empresas diretamente envolvidas no sistema. “Ela precisou convencer os demais a aceitarem o SwissPass, o que envolveu complexas estratégias de negociação”, explicaram Simão e Firmino. Duas empresas de mobilidade localizadas na parte francesa do território suíço (a TGP e a TL) foram as primeiras a serem escolhidas para integrar a plataforma do SwissPass por apresentarem menos resistência. O grupo dos motoristas e trabalhadores do setor, mesmo se posicionando criticamente em relação ao projeto, não teve força política para atuar contra sua implantação.

As negociações mais difíceis foram com um grupo composto pelas três maiores empresas públicas de mobilidade depois da SBB: BLS, Postauto e ZVV. “Essas três empresas têm uma posição historicamente contrária as projetos da SBB e estão localizadas na parte alemã da Suíça. Elas discordam em relação à distribuição do mercado de mobilidade e, por isso, esse grupo atuou mais fortemente contra a implantação do projeto”, pontuaram os pesquisadores. Esse grupo tentou negociar para que a SBB cedesse para as empresas da parte alemã 5% do mercado, tendo, como contrapartida a aceitação facilitada no SwissPass na parte alemã da Suíça. Como não houve acordo, o sistema tornou-se nacional nas ferrovias controladas da SBB, mas permaneceu regional no espaço urbano. Ele só opera integralmente, em todos os modais, na região de Romande. “Mesmo assim, a SBB manteve o discurso de que o SwissPass era nacional, quando, de fato, era aceito em todo o território, mas não estava sendo utilizado na região alemã do país”, destacam Simão e Firmino. “Tais conflitos e impasses demonstram uma intensa disputa de poder em torno do artefato urbano de mobilidade inteligente. Apesar de o sistema ser, na prática, apenas um cartão vermelho que leva as pessoas de um lugar para o outro, há, por trás desse pequeno objeto de plástico, uma série de relações de poder e controvérsias”, finalizam.